quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Madame Satã no divã

Acredito que o filme Madame Satã procura cutucar as idéias contrapostas de bom x mau, saúde x doença, questionando a moral da época, ao mostrar logo no início o personagem machucado, fragilizado, que deve ter apanhado muito da polícia, sendo sentenciado culpado. Indica que ele é um marginal, e nos incomoda. No decorrer do filme, ele é mostrado com seus impulsos agressivos, mas também os amorosos, criando uma identificação com o personagem. No fim do filme, ao mostrar novamente a face dele machucada, sentimos pena. É um jogo interessante, pois o repudiamos no início por representar a marginalidade que aflige a sociedade, o patológico, e no fim ele nos toca como um ser humano, com problemas, dificuldades, com amores e com ódios. Como nós.

O personagem do filme mostra-se inserido na sociedade de modo pouco adequado. Tem suas próprias regras, que nem sempre estão de acordo com as sociais, aproximando-o do crime. Vivencia as situações com poucos recursos internos para lidar com suas frustrações. Um personagem guiado pelas pulsões, com um superego fragilizado e enfraquecido pela debilidade do ego.

Pode-se categorizar essa personalidade como perversa, pois o ego está cindido. Parte não consegue lidar com a castração, afastando-se da realidade, e parte consegue. A personalidade perversa é pré-genital, e o próprio órgão genital é excluído do prazer sexual. A ordem pré-genital de relação acaba por estender-se a todas as relações objetais, ou seja, relações parciais com o objeto, onde a agressividade se faz presente com freqüência.

É significativo Madame Satã querer ser artista por diversas razões. Uma delas é a possibilidade de atuar suas fantasias concretamente, o que também é um traço da perversão. Uma outra é a flexibilidade que a arte permite em relação às normas sociais. Ao artista são permitidas algumas escorregadas que não são permitas ao indivíduo comum. É uma forma interessante de dar um caminho para um psiquismo não tão ajustado à civilização, mas que consiga estabelecer-se de algum modo inserido na sociedade, na ordem.

O filme apresenta cenas desfocadas, subexpostas e superexpostas. As cenas expressionistas podem relacionar-se a emoção provoca reações desmedidas. A emoção explode. As cenas impressionistas interpretei de um modo relacionado ao foco, ao que dou importância, ao que chama minha atenção. E o que está fora de foco é descartado. É aquilo que não quero enxergar. Pensando sobre o patológico e o normal, o foco direciona nossos pensamentos, nossas rotulações, nossas avaliações. É o foco que define se Madame Satã é marginal, artista ou doente.

A ferida aberta, as dores do ser humano, são escancaradas pela arte. Provoca pensamentos e emoções que na maior parte da vida tentamos nos afastar, negar. Mas, não é possível negar totalmente aquilo que é do homem, aquilo que é da vida. Essas coisas precisam de representações para evitar a loucura, fazendo-se assim necessária a arte, que também é repudiada por mostrarmos o que não queremos ver. Madame Satã/João apreende esses dois lados. Madame Satã, na sua arte, mostra a beleza, a sensibilidade, o amor e esse modo é bem aceito pela sociedade. Porém, João apresenta o lado agressivo, violento, de moral própria que é repudiado pelos demais. E é esse lado que é punido pela sociedade, quando João é condenado à prisão. Mas, no fim do filme, depois de termos acesso à sua arte, ele é o artista não compreendido pela sociedade, injustiçado, e sentimos pena de Madame Satã.
* Foto: cena do filme Madame Satã - ator Lázaro Ramos

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